Psicanálise e Teatro são velhos conhecidos, que formulam um tecido muito bem engendrado desde a formação intelectual de Freud às primeiras relações que Freud estabeleceu na construção de sua tese. Foi na poética de Aristóteles que ele encontrou o conceito de catarse. Em Aristóteles, a catarse é a purificação das emoções, especialmente de medo e piedade que o espectador experimenta ao assistir à tragédia. Em Freud e suas experiências com Breuer no início de suas investigações, a catarse foi observada como um processo pelo qual um afeto reprimido poderia ser liberado ao ser recordado e verbalizado, permitindo que a energia psíquica antes bloqueada encontrasse uma via de expressão. Mas essa é apenas uma das relações da Psicanálise com a arte. São muitos fios que fazem trama. O Teatro puxa um fio desde a antiguidade grega e a Psicanálise começa a tecer conjuntamente em fins do século XIX, adentrando os séculos XX e XXI.
Assim começou. Entre os muitos pontos que existem na relação da Psicanálise e do Teatro, quero puxar outro fio e tecer uma ideia. Para isso quero convidar você leitor a olharmos para outro grego chamado Téspis. Este é tido como o primeiro ator da história do teatro ocidental. Por volta do século VI a.C., na Grécia, ele teria saído do coro e falado em nome de um personagem, usando uma máscara e dizendo algo como “eu sou Dionísio”. Esse gesto é considerado o nascimento do teatro, porque introduz a ficção dramática e a representação individual. Téspis é considerado o primeiro ator do mundo ocidental.
Minha ideia, é que mesmo que a Psicanálise tenha sido construída na modernidade, e o acontecimento que descrevo acima no século VI a.C., há algo aí que aproxima territórios e faz tecido de novo com o teatro, a saber: ferida narcísica. Vamos lá, então.
Freud falava de três grandes “feridas narcísicas” infligidas ao narcisismo humano. Ele escreveu sobre isso em seu texto “Uma dificuldade no caminho da psicanálise” (1917). Nele, Freud, explica que a psicanálise fere o narcisismo humano ou seja, a ideia de que o ser humano ocupa um lugar central e especial no universo de forma semelhante a duas grandes revoluções anteriores. Freud pontua a primeira com Copérnico no século XVI, que conseguiu tirar a terra do centro do universo, se fazendo a ferida cosmológica. A segunda com Darwin no século XIX que tirou o ser humano do centro da criação ao mostrar que somos tão somente mais uma espécie entre outras, assim se fez a ferida biológica.
Nisso, Freud no século XX, tira a razão do centro da psique, ao mostrar que não somos senhores em nossa própria casa e se fez a ferida psíquica. Essas feridas são assim chamadas porque ferem de alguma forma o narcisismo humano, nossa ilusão de centralidade, controle e superioridade.
Seria o gesto de Téspis uma “ferida narcísica”? Eis o ponto ou problema que apresento: é coerente pensar que esse gesto também causa uma ruptura na forma como o humano percebe a si mesmo? Qual seria a resposta? Teria Freud passado seus olhos por Téspis?
Vou fazer um breve argumento. Ao “ser” um deus por meio da arte e da máscara, Téspis não afirma a divindade humana, mas inaugura a representação, o faz de conta, o distanciamento entre o eu e o outro. Isso coloca em xeque a identidade fixa, mostra que o “eu” pode ser outro e que o humano pode representar múltiplas identidades. Ou seja, o gesto teatral desestabiliza a noção de um sujeito uno, fixo e transparente a si mesmo. Assim como Freud desestabilizou a ideia de um sujeito totalmente racional e senhor de si, Téspis antecipou, por via estética, essa mesma ideia. A máscara que Téspis usou é simbolicamente, uma ferida narcísica, pois mostra que o eu é também um papel, que pode ser encarnado, performado, desconstruído.
Essa ideia me pareceu também possível de dialogar com pensadores como Nietzsche, Artaud, Lacan, Foucault ou mesmo Derrida, todos preocupados com a desconstrução do sujeito e das identidades fixas. Então imagino coerente e filosoficamente interessante dizer que o gesto de Téspis pode ser interpretado como algo próximo a uma ferida narcísica, talvez uma ferida estética ou ontológica, no sentido de que ele introduz a representação, a possibilidade do outro no eu, o descentramento da identidade.
ALIANÇAS DE CRIAÇÃO (OU REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA)
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. Tradução de Teixeira Coelho. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
BERTHOLD, Margot. História mundial do teatro. Tradução de Maria Paula V. Zurawski. São Paulo: Perspectiva, 2001.
FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud e Marx: Theatrum philosoficum. 4. ed. Tradução de Jorge Lima Barreto. São Paulo: Princípio, 1987.
FREUD, Sigmund. Uma dificuldade no caminho da psicanálise. In: FREUD, Sigmund. Obras completas: História de uma neurose infantil, Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. v. 14, p. 11–20.
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Tradução de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 1999.
ROUDINESCO, Élisabeth; PLON, Michel. Dicionário de psicanálise. Tradução de Vera Ribeiro et al. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
Texto escrito por Valéria Maria, Psicanalista, atriz e professora. Graduada em Educação Artística – Teatro (bacharelado e licenciatura) FURB-SC. Especializada em Psicologia Intercultural na prática clínica (PSI Terapia no Exterior – EUA). Especialista em Psicanálise: Clínica Lacaniana (Unifil/ESPE-PR). Especialista em Fundamentos estéticos e metodológicas da arte. Mestre em Teatro pela UDESC-SC. Psicanalista no Diretório Internacional do Psi Terapia no Exterior e na VM Psicanálise.