Como existir depois de viver a experiência de um corpo criar outro corpo? De sentir o movimento, de experimentar o mistério de ter outra vida dentro dessa casa-corpo? Como se separar da ideia de continuidade, da sensação de pertencimento do outro, da suposta necessidade de cuidar absolutamente?
São perguntas de mãe.
Mães desesperadas, desatinadas, que amam loucamente, intensamente, com seus corpos sem pele.
Mães que perdem a identidade, que esquecem que são mulheres, profissionais, esposas, amantes.
Mães que buscam um lugar de totalidade, tentando ser 100% mães. Que acreditam piamente que precisam produzir felicidade absoluta, que precisam poupar o filho de qualquer desconforto, dor, tristeza ou decepção.
Mães que embalam seus filhos a vácuo, como se ainda estivessem no útero, para que eles não respirem o ar do mundo sem antes passar pelo filtro de seus pulmões.
Mães que não conseguem bordear onde terminam seus corpos e começam os de seus filhos.
Abro para implicações, não no lugar de julgamento e condenação, mas no lugar que ocupo perfeitamente: o de mãe imperfeita.
Digo então, diga-se de passagem, a começar para mim mesma: A maternidade não é eternidade, apesar de rimar no português.
Não é eternidade no sentido de estar entregue nessa função por toda uma vida.
Mães que cuidam demais, sufocam.
E porque sufocam, matam o desejo.
Aniquilam e controlam seus filhos por um cordão umbilical imaginário.
Sigo trazendo inquietações, dúvidas, muitas dúvidas: o que faz uma mãe sufocar tanto, a ponto de se confundir com o ar que o filho respira? Seria o ideal que lhe foi imposto: o da perfeição, o da entrega absoluta, o da mulher que se dissolve no cuidado?
Vera Iaconelli, em seu “Manifesto Antimaternalista”, chama isso de armadilha (Iaconelli, 2023, p. 32).
Uma estrutura social e simbólica que captura o corpo feminino e o transforma em instrumento de cuidado, culpando-o sempre que algo falha.
Ela lembra que o maternalismo é um dispositivo de controle, político, moral e afetivo, que exige das mulheres uma performance impossível: gerar, nutrir, suportar e ainda sorrir.
Quando a mãe acredita nesse ideal, deixa de existir como sujeito.
E, paradoxalmente, é nesse excesso de amor que começa o esvaziamento de si e do filho.
A psicanálise de Donald Winnicott oferece uma saída possível: a da Mãe Suficientemente Boa (Winnicott, 1978, p. 273).
Não a mãe perfeita, mas a que se permite falhar.
Aquela que, no início, se adapta quase inteiramente ao bebê, mas que, pouco a pouco, precisa frustrá-lo.
É no intervalo entre o amparo e a ausência que nasce o sujeito, no que Winnicott chamaria de espaço transicional. Só entra ar onde tem janelas abertas, ou portas. Fechar demais sufoca.
A Mãe Suficientemente Boa entende que amar também é permitir que o outro sinta falta, caia, erre, chore.
Ela não protege do mundo, ela apresenta o mundo.
O sufocamento nasce quando a mãe se recusa a deixar o filho respirar sozinho, quando o medo de perdê-lo se confunde com o medo de perder a própria razão de existir.
Em “Uma Mulher”, Annie Ernaux escreve o luto da mãe, mas também o da filha que, ao se ver sem a figura materna, percebe o espelho da mulher que foi e da que não pôde ser (Ernaux, 2021, p. 25).
A autora mergulha no silêncio das gerações: o que resta de uma mulher quando o papel de mãe se extingue?
A escrita é seu modo de exumar uma ancestralidade que a moldou e a prendeu.
Há dor, mas também libertação, o reconhecimento de que, por trás da mãe, sempre houve uma mulher tentando nascer.
Essa tensão também atravessa “Uma/Duas”, de Eliane Brum (Brum, 2011, p. 11).
Ali, mãe e filha são espelhos rachados.
O amor é tão denso que sufoca, tão íntimo que fere.
A mãe quer fundir-se; a filha, escapar.
Mas escapar é também culpa.
Brum traduz com maestria essa ferida compartilhada: o desejo de ser uma só e, ao mesmo tempo, a necessidade vital de ser duas.
É o drama da fusão e da separação, o mesmo que se desenrola, silenciosamente, em tantos lares e corações.
A clínica da maternidade também encontra ressonância no drama cinematográfico, como no filme “Cisne Negro”.
A bailarina Nina, pressionada pela mãe ex-bailarina, vive a simbiose extrema.
A mãe de Nina projeta nela a própria frustração e o desejo de perfeição artística não alcançado, exercendo um controle obsessivo sobre seu corpo e sua vida.
A relação entre elas é o ápice da mãe que sufoca: a filha é tratada como uma extensão, um objeto que deve realizar o desejo da mãe, e essa fusão impede a protagonista de acessar sua própria sexualidade e agressividade, essenciais para o papel do Cisne Negro.
A desintegração psíquica de Nina, portanto, é a manifestação radical do sufocamento materno que aniquila a alteridade.
Winnicott nos ajuda a compreender esse embate.
Quando a mãe não falha, quando ela se oferece inteira e sem limites, o filho não aprende a diferenciar o dentro do fora, o eu do outro.
E quando a falha se torna abismo, quando há ausência radical, desamparo, instala-se a dor crua da rejeição.
O equilíbrio está no entre, no espaço do “suficientemente”.
Amar é bordar limites.
Vera Iaconelli nos lembra ainda que essa exigência de perfeição materna não é apenas subjetiva, é política.
A sociedade ainda se apoia sobre o trabalho invisível das mães, o cuidado não pago, o tempo sacrificado, o corpo exausto.
A culpa, portanto, não nasce apenas no inconsciente, mas é produzida também por uma cultura que glorifica o amor materno enquanto o explora.
O antimaternalismo de Iaconelli não é um ataque à maternidade, mas uma convocação à consciência: devolver à mulher o direito de existir como sujeito de desejo, não apenas como função.
Talvez o maior gesto de amor de uma mãe seja o de reconhecer o próprio limite.
De saber que o corpo que criou já não lhe pertence, que o filho precisa respirar o ar do mundo, com poeira, frio, feridas e delícias que não passam mais por seus pulmões.
Permitir-se falhar é também permitir que o filho exista.
A Mãe Suficientemente Boa é aquela que deixa o espaço para o filho inventar o mundo à sua maneira, e, com isso, reencontra o próprio desejo.
A mulher que ousa sair do lugar da mãe perfeita volta a se ver.
Não como ausência, mas como presença viva, imperfeita, pulsante.
Aquela que sabe que amar não é garantir felicidade, e sim sustentar a falta.
Que ser mãe não é aprisionar, é libertar.
E que o cordão, esse fio invisível, não se corta de uma vez, ele se transforma.
Deixa de ser laço e passa a ser memória, respiração compartilhada, presença sem posse.
O amor que sufoca é, em última instância, a negação do desejo. A psicanálise, sobretudo a partir de Lacan, nos ensina que a maternidade convoca a mulher a confrontar-se com sua falta-a-ser (Lacan, 1998, p. 200). O risco do sufocamento reside justamente na tentativa de tamponar essa falta estrutural com o filho, fazendo dele o objeto a que completaria o que em si é vazio. A ética da psicanálise propõe outro caminho: o de sustentar o desejo como falta e reconhecer o sujeito em sua alteridade. Nesse sentido, a mãe suficientemente boa é também aquela que suporta não ser o Tudo. E é nesse não-todo que reside o amor que liberta.
Referências Bibliográficas
BRUM, E. Uma, Duas. São Paulo: Leya, 2011.
ERNAUX, A. Uma Mulher. Rio de Janeiro: Fósforo, 2021.
IACONELI, V. Manifesto Antimaternalista: Psicanálise e políticas da reprodução. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.
LACAN, J. “O Seminário sobre ‘A Carta Roubada'”. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
WINNICOTT, D. W. Da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1978.
Texto escrito por Flávia Carvalho, Psicanalista, parceira da Escola de Psicanálise de Curitiba e mãe. Possui Graduação em Administração, é Graduanda em Psicologia e Pós-graduada em Psicanálise Clínica e em Gestão Estratégica de Pessoas. Desenvolve o seu trabalho clínico com foco na intersecção entre o feminino, a maternidade e a constituição subjetiva. É Consultora e Mentora Organizacional com foco em Gestão de Pessoas.