A travessia e o tempo da palavra

A psicanálise é um convite à travessia, não para chegar a algum lugar, mas para se deixar transformar pelo caminho.
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Há tempos venho pensando sobre essa travessia que nos atravessa, essa experiência de mergulhar na psicanálise como quem decide, um dia, ouvir de verdade o que há por dentro. Porque é isso o que a psicanálise faz: ela nos coloca em movimento. Não é um caminho traçado, nem um percurso que se possa planejar. É mais parecido com o ato de atravessar o mar, sem saber onde termina, nem o que seremos quando chegarmos do outro lado.

Quando me aproximei da psicanálise, confesso: eu também buscava respostas. Talvez um modo de entender a mente humana, talvez um jeito de aliviar aquilo que não se nomeia. Mas logo percebi que o que ela oferece não são respostas, e sim perguntas. Perguntas que não cessam, que se repetem, que se transformam. A psicanálise não vem para resolver, mas sim para revelar. E perceba: o que ela revela, quase sempre, é o que tentamos esconder de nós mesmos.

O começo da travessia

A travessia começa quando o sujeito fala. Às vezes, é uma frase solta, dita sem intenção. Outras vezes, é um silêncio pesado, cheio de histórias que ainda não encontraram palavras. E, de repente, algo se desloca. É nesse instante que começa o percurso, não quando se entende algo, mas quando se escuta algo que antes passava despercebido.

Na análise, o que era apenas teoria se torna experiência. O inconsciente deixa de ser um conceito distante e começa a se fazer sentir nas entrelinhas do discurso, nas pausas, nos esquecimentos, nos sonhos. A tópica deixa de ser um mapa e se transforma em território vivo e pulsante. Então, não se trata de saber sobre o inconsciente, mas de ser atravessado por ele. E é aí que tudo muda: o estudo, a prática, o modo de estar no mundo. É quando a teoria deixa de ser teoria e passa a ser vida.

O tempo da palavra

A psicanálise exige tempo. Um tempo que não se mede em horas ou calendários, mas no ritmo da palavra. O tempo da fala, o tempo do silêncio, o tempo do que insiste em não se dizer. Vivemos tempos velozes, em que tudo precisa caber em poucos segundos. Mas o inconsciente não tem pressa. Ele trabalha devagar, nas frestas, no intervalo entre o que se pensa e o que se diz. Por isso, a travessia analítica é uma experiência de desaceleração. Ela nos ensina a escutar antes de responder, a suportar o que não entendemos, a dar lugar ao que escapa.

Freud nos lembrou, tantas vezes, que não há cura sem tempo e, eu diria, não há formação sem travessia. Na análise, o que cura não é a explicação, mas a palavra que se deixa encontrar no tempo certo, quando o sujeito está pronto para ouvi-la.

A ética do não saber

A travessia psicanalítica é, antes de tudo, uma experiência ética. Como sempre repito, não se trata de saber mais, mas de sustentar o não saber. É um convite a desocupar o lugar do mestre, a deixar espaço para o sujeito que fala.
E isso exige coragem de não impor sentido, de não oferecer atalhos, de não preencher o vazio. Um ponto fundamental em toda análise: o analista caminha junto, mas não guia. Ele escuta e é essa escuta, tão rara e tão necessária, que sustenta a possibilidade de transformação. Observe: o sujeito, ao ser escutado de verdade, se escuta também. E nessa escuta algo se desloca, algo se nomeia, algo nasce.

A travessia do analista

Ser analista é, também, estar em travessia. Nenhum analista se constitui apenas nos livros, nos seminários ou nos cursos (por mais preciosos que sejam). Constitui-se no percurso, na própria análise, na escuta cotidiana, nas vezes em que se surpreende com aquilo que ainda o atravessa. Assim, a formação do analista não é uma linha de chegada, mas uma experiência viva. Não há diplomas que autorizem a escuta, mas sim, percursos que a legitimam. E cada percurso é único, porque cada sujeito é único.

Por isso, o analista segue em contínuo movimento. Segue estudando, escrevendo, questionando, atravessando-se. Um ponto que é importante repetir: a psicanálise não é um saber que se domina, mas uma experiência que se vive e que, quanto mais se vive, mais se reconhece o infinito que a habita.

O cotidiano como lugar da escuta

Outro ponto importante a se destacar é que a psicanálise não mora apenas no consultório. Ela está em tudo o que envolve o humano: nas relações, nos gestos, nas palavras ditas e nas que ficam por dizer. Ela está na forma como olhamos o outro, na paciência com o tempo, na delicadeza com o silêncio. Quando a psicanálise nos atravessa, ela muda a forma como habitamos o mundo. Passamos a escutar de outro modo, com menos julgamento, mais presença, mais cuidado.

E, talvez, seja justamente isso o que faz da psicanálise uma experiência tão viva: ela não promete curas rápidas, não oferece atalhos, não se dobra ao tempo cronológico. Ela nos ensina a viver no tempo da palavra, no tempo do inconsciente, que é também o tempo da verdade. A psicanálise é muito mais do que quatro paredes. Ela está nos encontros, nas pausas, nas travessias silenciosas de cada um. Ela é vida, porque lida com o que é mais vivo em nós: o desejo, o inconsciente, o mistério de ser quem somos.

O que a travessia nos ensina

Com o tempo, aprendi que a psicanálise não se ensina: se transmite. E transmitir não é despejar conhecimento, mas criar condições para que algo se acenda no outro. É por isso que, na EPC, buscamos construir espaços de travessia: lugares onde o tempo tem outro ritmo, onde a teoria encontra a experiência, onde o saber ganha corpo. Em cada aula, em cada grupo de estudos, em cada encontro presencial, há sempre essa tentativa de sustentar algo que não é apenas “ensino”, mas vivência.
E essa vivência se faz de forma coletiva, atravessando psicanalistas, estudantes, pesquisadores, todos implicados, todos em travessia.

Não há mapa. Não há promessa de chegada. Mas há algo que nos move: o desejo de escutar, de compreender, de sustentar o enigma que habita o humano. E é isso que mantém a psicanálise viva: a disposição de caminhar sem certezas, mas com presença.

Travessia infinita

A travessia psicanalítica não termina. Ela segue, como o fluxo do inconsciente, reinventando-se a cada passo. Cada análise, cada leitura, cada escuta é um novo começo. E, se há algo que a psicanálise nos ensina, é que não existe fim quando se trata do desejo. O desejo é o que nos move, é o que nos faz seguir.

No fim das contas, a psicanálise é isso: um convite. Um convite a atravessar o próprio inconsciente, a encontrar, entre silêncios e palavras, o que há de mais verdadeiro em nós. Um convite a sustentar o tempo da travessia, mesmo quando não há mapa, nem chegada.

E talvez seja justamente nesse não saber, nesse caminho sem garantias, que reside sua maior beleza. Na psicanálise, o destino não importa. O que importa é o percurso. E, no percurso, descobrimos algo que muda tudo: que viver é, também, uma forma de travessia.

*Transcrição da palestra de abertura do evento “Psicanálise e travessia”, proferida em 20/05/2021 no grupo de estudos Psicanálise e cena contemporânea (Porto Alegre)

 


Texto escrito por Fabricio Tavares, Psicanalista e professor. Graduado em filosofia e serviço social; especialista em psicanálise; mestre em serviço social.

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