Sempre acreditei que é por meio da própria análise que se aprende, de fato, o funcionamento do aparelho psíquico. Nenhum estudo teórico, por mais consistente que seja, é capaz de substituir a experiência viva do inconsciente. Essa é uma verdade que não se compreende de imediato: é preciso tempo, escuta e, sobretudo, coragem para atravessá-la.
A teoria que ganha corpo
Quando iniciei meu percurso na psicanálise, achava que aprender seria acumular conceitos, entender as tópicas, decorar as dinâmicas e compreender o que Freud quis dizer com seus tantos termos complexos. Mas, pouco a pouco, percebi que há uma distância enorme entre compreender intelectualmente e viver subjetivamente. Há um ponto em que a teoria deixa de ser explicação e se torna experiência, e é aí que o analista começa a nascer.
A análise pessoal é, antes de tudo, um encontro com o que em nós resiste. É um exercício de escuta que desmonta a ilusão de controle e nos coloca diante de algo que nos escapa: o inconsciente. É nesse espaço (entre o que se diz e o que não se sabe que se disse) que começa a verdadeira formação.
Com o tempo, percebi que as tópicas deixam de ser apenas estruturas teóricas. Elas se tornam territórios internos, lugares psíquicos que se movimentam dentro de nós. A dinâmica (esse jogo das forças entre pulsões, defesas e desejos) passa a ser sentida na própria fala, nos silêncios, nos lapsos. E a economia, esse fluxo energético tão estudado nos textos, torna-se perceptível no corpo, no cansaço, na angústia, nas repetições que insistem em voltar. A cada sessão, a teoria vai ganhando corpo. O que antes parecia conceito se transforma em vivência. A transferência, por exemplo, deixa de ser um termo abstrato para se tornar algo pulsante: sentimos o que é investir afetivamente em alguém, reviver padrões, projetar amores e ódios, reconhecer repetições. Freud e Lacan deixam de ser nomes e se tornam presenças que atravessam o nosso dizer.
Compreendo hoje que esse é o momento em que o saber se personifica. Não se trata de saber sobre o inconsciente, mas de atravessar o inconsciente em primeira pessoa. E esse atravessamento, longe de ser linear, é cheio de desvios, retornos e pausas.
O tempo da formação
Na psicanálise, não há provas, avaliações ou diplomas que possam medir o que foi atravessado. Não há um cronograma fixo que determine o tempo de uma travessia. Cada sujeito tem o seu. Há quem leve anos para enunciar uma verdade; há quem precise de silêncio antes de conseguir falar. A pressa não cabe nesse território e talvez por isso, em tempos de velocidade e performance, a psicanálise se mantenha como um ato de resistência.
O processo formativo não se mede por notas, leituras decoradas ou desempenho acadêmico. Ele se sustenta na experiência subjetiva que cada um realiza em seu próprio tempo. A formação psicanalítica é, antes de tudo, uma formação de si. E essa é uma das grandes belezas (e também das grandes dores) da psicanálise: ela nos obriga a olhar para dentro. O foco deixa de ser o outro, ou o reconhecimento externo, e passa a ser o próprio dizer. Aprender psicanálise é aprender a escutar-se. É descobrir, dentro da própria fala, o que escapa, o que retorna, o que insiste.
Lembro-me de quantas vezes saí de uma sessão em silêncio. Não porque faltassem palavras, mas porque o que havia emergido ainda não cabia nelas. A análise nos ensina a sustentar o não saber, a conviver com o enigma. É esse exercício que prepara o analista: não a resposta pronta, mas a disposição para continuar perguntando.
A ética da escuta
Com o tempo, o olhar se transforma. Começamos a perceber que cada resistência é uma defesa necessária, que cada repetição carrega um sentido que precisa ser escutado, que cada sintoma é uma forma singular de dizer o indizível. A clínica começa a se desenhar dentro de nós antes mesmo de nos sentarmos diante de um analisante. E é curioso como, quanto mais avançamos na análise pessoal, mais humildes nos tornamos. Descobrimos o quão pouco dominamos, o quão frágil é nossa pretensão de compreender o outro sem antes ter atravessado nossas próprias sombras. Como sempre digo, o verdadeiro analista não é aquele que sabe, mas sim aquele que suporta não saber.
A psicanálise, afinal, não se aprende nos livros. Ela se experimenta na escuta, na transferência, no tempo da palavra. As leituras são fundamentais, claro — Freud, Lacan, Winnicott, Klein, Ferenczi, Bion —, todos nos dão estrutura e direção. Mas sem a experiência viva da análise, o conhecimento permanece na superfície.
Foi apenas vivendo essa travessia que compreendi o sentido ético da formação. A ética da psicanálise não está em seguir um código de conduta, mas em sustentar o tempo do inconsciente, o tempo do sujeito. É preciso respeitar esse ritmo que não se curva à lógica da produtividade, nem à ansiedade da conclusão.
Cada percurso é único
Cada percurso é único porque cada sujeito é único. Nenhum analista vivencia o percurso da mesma forma que o outro. Há quem se encontre na teoria, há quem se encontre na escuta, há quem precise se perder muitas vezes até começar a se encontrar. É esse movimento, de perda e reencontro, que forma o analista. É por isso que costumo dizer que a psicanálise não é um aprendizado cumulativo, mas transformador. Não se trata de acumular conhecimento, mas de permitir que o conhecimento nos transforme. Só assim a teoria se torna ética e prática. Como diz Ogden (2010, p.17), “um processo de inventar a si mesmo durante o caminho”.
O analista, quando escuta, escuta a partir da própria travessia. Ele reconhece, no outro, algo do que já atravessou e é justamente isso que dá profundidade à escuta. Nenhum manual ensina o que é sustentar o silêncio diante da dor do outro, ou o que é acolher uma fala que fere, que desconcerta. Isso só se aprende vivendo.
A escuta da vida
Há algo profundamente humano nesse ofício. A formação analítica é também uma formação para a escuta da vida: dos gestos, dos afetos, das pausas. É aprender a estar presente, não para responder, mas para acompanhar o movimento da fala. Muitas vezes, o percurso é solitário. Há momentos em que parece não haver avanço, em que o inconsciente se fecha, em que tudo se repete. Mas é nesses instantes que a travessia se fortalece. Porque é aí que se aprende a esperar, e esperar, na psicanálise, é também um ato de amor.
Hoje, olhando para trás, percebo que o processo analítico me deu algo que nenhum curso poderia oferecer: a possibilidade de me escutar. Essa escuta me tornou mais inteiro, mais sensível, mais disponível. E é isso que, pouco a pouco, se reflete na minha prática: o analista que sou nasce do sujeito que me tornei ao me deixar atravessar. Cada sessão, cada silêncio, cada resistência se transformaram em lições de humanidade. Assim, aprender psicanálise é, em última instância, aprender a ser humano de novo, com todas as contradições, fragilidades e potências que isso implica. A psicanálise, para mim, é isso: uma aposta radical na escuta, na singularidade e na transformação que nasce do encontro com o inconsciente.
A formação como travessia
Acredito que esse seja o verdadeiro sentido da formação psicanalítica: não um acúmulo de saberes, mas uma travessia existencial. A análise é o que nos permite, enquanto analistas, sustentar a escuta do outro sem nos perdermos nela. É o que nos dá fôlego para continuar, mesmo quando o sentido parece ausente. Quando alguém me pergunta o que é “formar-se analista”, costumo responder: é tornar-se capaz de escutar o outro sem se esquecer de escutar a si mesmo. É ter atravessado o próprio labirinto para poder acompanhar alguém no dele.
E, talvez, seja justamente isso o que faz da psicanálise uma experiência tão viva: ela não promete curas rápidas, não oferece atalhos e não se dobra ao tempo cronológico. Ela nos ensina a viver no tempo da palavra, no tempo do inconsciente, que é também o tempo da verdade. Psicanálise se faz presente nas relações, nos encontros cotidianos, nas trocas mais simples e nas possibilidades de escuta que se abrem no meio da vida. Porque, afinal, a psicanálise é vida — e é na vida que ela encontra seu verdadeiro sentido.
Referências
OGDEN, T. Esta arte da psicanálise. Sonhando sonhos não sonhados e gritos interrompidos. Porto Alegre: Artmed, 2010.
Texto escrito por Fabricio Tavares, Psicanalista e professor. Graduado em filosofia e serviço social; especialista em psicanálise; mestre em serviço social.